Cuidado com os amigos de Jó


A história contida no livro de Jó, aponta para o período de sofrimento de um homem e a sua busca por uma resposta divina que tornasse clara a motivação de todas as calamidades que lhe sobrevieram.

O livro provavelmente remete a um período anterior a 1000. Isso por que suas posses eram medidas pela quantidade de bens que possuía (camelos, ovelhas, bois, jumentos e servos), comuns aquela época e suas terras estavam sujeitas ao ataque de tribos peregrinas.

A tensão do livro tem o seu início em um cenário fora do contexto de Jó. Ele inicia com um teste proposto pelo próprio Deus a Satanás (caps 1 e 2). "Observaste a meu servo Jó? Não há ninguém na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, que teme a Deus e se desvia do mal." - o autor do livro, divinamente inspirado, utiliza logo no início o testemunho do próprio Deus a respeito de Jó, e este prefácio deve nortear toda a leitura do livro. Todo o sofrimento que sobrevirá a Jó não está relacionado a nenhum pecado que ele tenha cometido, isso quem diz é o próprio Deus.

Jó era um sábio de sua época. É difícil compreendermos com exatidão o papel que ele exercia em sua comunidade, devido não ser um costume da cultura ocidental moderna que vivemos. Pelas informações contidas na própria Escritura, sabemos, entretanto, que ele orientava as pessoas com seus conselhos em algum local específico na entrada da cidade. Posteriormente os sábios tiveram um importante papel também no contexto do palácio.

Além de ser um sábio, Jó era um homem religioso. Mas é por causa da sua cosmovisão e a dos seus amigos que o conflito do livro se desenrolará.

Ao saber do sofrimento de Jó, três amigos seus, Elifaz, o temanita, Bildade, o suíta, e Zofar, o naamatita, vieram para consolá-lo (cf 2.11).

Cada amigo de Jó possuía uma característica distinta: Elifaz era o mais bondoso e confiante (cf 4; 5; 15 e 27); Bildade era mais tradicionalista (cf 8; 18 e 25) e Zofar um dogmático determinado (cf 11 e 20). Todos estavam dispostos a trazer consolo e solução para o problema do sofrimento de Jó, e a finalidade da mensagem de cada um era que ele precisava se arrepender do pecado cometido e que resultou naquela sua aflição.

Lembra-te: Quem sendo inocente, jamais pereceu? Onde foram os retos destruídos? Segundo o que tenho visto, os que lavram a iniquidade e semeiam o mal, isso mesmo segam. Com o hálito de Deus perecem; com o sopro da sua ira se consomem. [...] Já examinamos isto, e assim é. Ouve-o e aplica-o para teu bem. (cf 4.7-9 e 5.27)

Os amigos de Jó, eram também ricos em sabedoria e em observar o mundo a sua volta. Como religiosos, "possuíam experiências" para lidarem com aquele tipo de situação. No decorrer do livro cada um vai, portanto, dando a sua "contribuição" para solucionar o problema e afastar aquele sofrimento do amigo. Contudo, Jó não podia dobrar-se diante das belas palavras de cada um. Para ele nada daquilo fazia sentido e não compreendia o que levara YHWH a mudar repentinamente o seu comportamento para com ele.

A medida em que os debates vão se desenvolvendo e a tensão vai aumentando, Jó começa parecer como um orgulhoso aos olhos dos seus amigos por não aceitar suas palavras. Os discursos vão ficando cada vez mais duros e eles passam a acusar o amigo de pecados ocultos que possa ter cometido. Durante todo o desenrolar do livro, um conflito vai se intensificando na mente de Jó, o que leva aos seguintes pontos que não foram considerados pelos seus amigos:

1 - Nem todo sofrimento é causado por algum pecado cometido

Isto estava ficando claro na situação de Jó. A integridade de Jó foi certificada pelo próprio Deus. Isso não significa que Jó não fosse pecador, como todas as pessoas são, mas que, naquela situação específica seu sofrimento não era uma punição pelos seus erros cometidos.

Os amigos e até o próprio Jó tinham, até então, um entendimento retribuitivo do caráter de Deus. Nessa visão, YHWH abençoaria com riquezas, saúde, uma vida feliz e próspera os seus filhos, enquanto estes vivessem uma vida reta e sem iniquidades. Por outro lado, manifestaria o seu lado punitivo quando estes desobedecessem algum mandamento ou cometessem algum tipo de pecado grave. Este entendimento errôneo do caráter divino ainda é intrínseco em algumas visões teológicas atuais, e se acomoda bem a limitação da razão humana aonde todo problema deve ter um culpado, todo bem é pago com o bem e todo mal sempre deve ser punido.

2 - Respostas prontas não respondem todos os problemas

Os amigos de Jó não queriam aceitar que todo o seu conhecimento teológico e as suas experiências religiosas não podiam ser aplicadas naquele problema.

“Já examinamos isto, e assim é. Ouve-o e aplica-o para teu bem.”

Tudo entraria em colapso se Jó não reconhecesse sua culpa em toda aquela situação! Os argumentos, o conhecimento e as experiências, tudo teria que ser revisto por seus amigos. Os amigos de Jó estavam diante de um problema novo e desconhecido, e suas respostas autoritárias e requentadas não podiam solucionar.

O problema dos amigos de Jó não está distante de nós, muitos séculos depois. Muitos pastores tem se acomodado a oferecer respostas prontas para os problemas de suas igrejas. Eles estão convencidos de que as suas respostas são corretas, pois já aplicaram-na em muitas outras situações. Ao se depararem com situações diferentes, apelam para uma oratória cheia de autoridade, onde qualquer resistência em aceitá-la é considerada também resistência à disciplina do Senhor.

3 – A única saída de Jó era para o alto

Jó estava convencido de que seus amigos não estavam com a razão em seus depoimentos. A tensão do livro muda de ângulo quando ele também muda o foco do seu questionamento. Agora Jó questiona Deus sobre o motivo da mudança de sua atitude para com ele. O debate chega ao clímax: Jó lança o seu desafio a Deus (cap 31), e Deus responde com outro desafio (caps 38-41). Quem vencerá este duelo? O capítulo 42 nos mostra o vencedor. Poderia Jó desafiar a soberania de Deus?

A ânsia por um culpado e por respostas ficam para trás quando percebemos que a proposta inicial do livro foi correspondida. O teste inicial lançado por YHWH foi realizado com sucesso. A integridade de Jó foi atestada à Satanás, mesmo que este tenha sido submetido a tal sofrimento. Derek Kidner está correto quando diz:

De uma vez por todas, as cenas de abertura deixam claro que o sofrimento não implica necessariamente em qualquer culpa na vítima, falhas em suas precauções ou até mesmo em sua fé. Seja lá qualquer palavra áspera que Jó venha a dizer e posteriormente retratar, e seja lá qual pecado ele tenha cometido como o resto de nós, o prólogo deixa claro que seu sofrimento não tem nenhuma relação com qualquer uma destas coisas. Portanto, longe de ter algo a ver com culpa, foi exatamente a sua inocência que o expôs a todo este martírio, o que Deus fez questão de reiterar por duas vezes (1:8; 2:3)

Jó não obteve as respostas que desejava no início. Entretanto, o conhecimento mais profundo e real que ele adquiriu de Deus o fez perceber que a sua cosmovisão, assim como a dos seus amigos, era até então equivocada e incapaz de solucionar aquele problema. Foi necessário Jó aceitar que as experiências e respostas humanas são limitadas comparadas a infinitude do Senhor.
Com os ouvidos eu ouvira falar de ti, mas agora te vêem os meus olhos. (cf 42.5)


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